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A MORALIDADE SEM DEUS - by Kátia Vanessa Tarantini Silvestri

Atualizado: 11 de mar. de 2022

“A Moral, enquanto fundada no conceito do homem como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si mesmo pela razão a leis incondicionadas, não precisa nem da ideia de outro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro móbil diferente da própria lei para o observar” (KANT, A religião nos limites da simples razão, 2008, p.09).


Há uma pergunta que com certeza todos nós já nos fizemos alguma vez: “por que obedecer a Deus?"

Kant (1724- 1804) é um dos filósofos mais respeitados quando o assunto é a ética. Suas definições acerca do que é ser um sujeito moral prevalecem ainda hoje como podemos ver na aplicação do direito penal, pelas noções de crime culposo e doloso, ou todas as vezes que dizemos que fizemos algo e que tínhamos uma boa intenção.

Normalmente, as pessoas dizem que devem ser éticas, ou em termos teológicos, que devem obedecer a Deus tendo como fundamento a noção teleológica da moral, ou seja, “Deus quer”; “é Vontade de Deus”. Kant desconstrói esse raciocínio. Vale ter em mente que Kant tinha uma sólida formação cristã, porém jamais concordou com o argumento de autoridade que os filósofos desde Santo Agostinho vinham estabelecendo. O argumento de autoridade coloca a autoridade externamente ao sujeito, isto é, alguém pensa/ decide por mim e eu fico como que “livre” dessa responsabilidade. Kant chama esse outro que pensa por mim de tutor e este podem ser os pais, os padres, os professores, os médicos, os políticos entre outros. Mais precisamente, o sujeito fica como que preso a menoridade: não usa de seu próprio discernimento, de sua vontade para tomar suas decisões. O argumento do tipo é vontade de Deus, nessa perspectiva, não passa de um exemplo desses álibis que nos limitam a menoridade.

Não obstante, Kant critica os esforços para demonstrar a existência de Deus que se iniciam fortemente na Idade Média, por exemplo com Santo Agostinho, e chegam à modernidade com a tentativa lógica de Descartes. Vejamos a tentativa de Descartes e a crítica kantiana. Descartes estabeleceu a prova da perfeição, dizia ele: “Deus é perfeito, eu sou imperfeito; eu penso imperfeitamente. Eu penso Deus”. E continua: “Esse raciocínio é absurdo”. Então, para vencer esse absurdo, conclui Descartes: “Deve haver alguém que me permita pensar o perfeito. Logo, é Deus aquele que me permite vencer esse absurdo. Então Deus existe!”

Não precisamos ser um Kant para percebermos a fragilidade desse raciocínio. Kant resolve essa fragilidade dizendo duas coisinhas. Primeiro, podemos pensar Deus imperfeitamente, visto que somos imperfeitos. Ou seja, “Deus é aquele que me permite pensar a perfeição imperfeitamente!” Pronto, acaba o absurdo. Segundo, apesar de resolver o absurdo de Descartes, Kant diz que essas tentativas de demonstração da existência de Deus são estúpidas, pois a relação com Deus é de fé. E a fé é a certeza daquilo que não pode ser demonstrado. O demonstrado acaba com a fé! Genial Kant, não é mesmo?! Ele ainda diz que “a existência de Deus escapa da competência do entendimento humano, só a fé a permite”.

Se Deus é a certeza sem demonstração e em contrapartida a moral é a certeza com demonstração, a questão se recoloca: se uma pessoa obedece a Deus, obedece (é moral) por quê? Kant afirma existir duas linhas mestras para essa obediência, mas alerta que ambas são vergonhosas. Uma é que se obedece a Deus, aos mandamentos divinos, porque queremos ser salvos, outra é por medo do castigo infernal. Em ambos os casos há, como salienta Kant, um interesse pessoal e a dignidade moral não pode estar fundada num principio exterior a nós - os tutores – nem ser interessada - por medo ou por querer se salvar. E não pode por quê?

Conforme Kant, nossa dignidade moral reside no fato de sermos sujeitos racionais, que deliberam por si mesmos. Tudo o que for imposto ou fundando em paixões como o medo ou glorificação será em nós como um corpo estranho que tentaremos eliminar como se fosse uma doença. A moralidade é, portanto, o vencer constante de nossos instintos que nos dominam (as mais diversas paixões como medo, raiva, desejo etc.), não por medo, por salvação ou por conformismo – sentimento que os tutores nos causam – mas por buscarmos ser livres. Eis que liberdade é fazer o que não queremos. Vejamos, querer em Kant é sinônimo de instinto/desejo e a vontade é sinônimo de razão, deliberação racional ou ainda a boa vontade – a intenção. Kant diz que a única coisa boa em si é a boa intenção, está nunca precisa ser confirmada como todas as outras coisas. Tudo pode ser corrompido, menos a boa intenção. Daí o raciocínio que sendo um ser racional devo escolher e ao escolher pratico minha liberdade e serei bom/moral por deliberação racional e não por interesses pessoais como medo, salvação ou conforto advindo do conformismo.

Nossa dignidade moral é decidida pela nossa boa vontade. Como diz Kant, até a inteligência pode ser usada para o mal. E somente a boa vontade é incorruptível, daí a noção que repetimos muito: “valeu a intenção”, e como está é fruto de uma deliberação racional sobre nossos instintos/desejos, ela só pode ser boa sempre. E Kant dá uma dica para sabermos se nossa intenção é boa, diz ele que basta nos perguntarmos se o que fazemos pode ser repetido por todo mundo. Se a resposta for sim, é uma boa intenção.

Notemos que Kant exige muito de cada um de nós. Exige que façamos um exame constante de nossas deliberações, que pensemos antes de agir e que só ajamos quando a intenção for para um bem maior – para todos/ sociedade – e não um bem particular, egoísta – particular. Por fim, com Kant, muito antes de Nietzsche, Freud ou Sartre, podemos ser sujeitos de bem, morais sem recorrer ao princípio de autoridade, mas sim por sermos seres dotados de razão e capacidade para julgar o que é o bem para todos nós, do contrário, enfatiza Kant, estaremos negando nossa própria racionalidade e liberdade.

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