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O TEMPO E A QUESTÃO DA TEMPORALIDADE - by Kátia Vanessa Tarantini Silvestri



DALI. A persistência da memória


A questão sobre o tempo é o tema mais fundamental quando se trata de nós seres humanos. Somos seres temporais. Nascemos, crescemos e morremos. Ao falar assim parece tão simples, não é mesmo? Ou cruel? Será? Mas sabemos que esse percurso é o mote de nossas existências, e o tempo é uma experiência que nos provoca a transgredir nossa finitude e ao mesmo tempo reconhecer essa mesma finitude como impulso, motivo e razão de nosso ser, devir. Daí o aniversário, as comemorações, as festas de fim de ano serem tão antigas como a própria humanidade.

O tempo não existe a não ser para nossas convenções humanas. Mais precisamente, a maioria dos físicos quânticos explicam que o tempo é uma ilusão; é uma experiência do observador, singular, portanto, não sendo igual no universo nem para duas pessoas no mesmo espaço. Em termos mais cotidianos falamos em tempo kairótico e cronológico. A Filosofia desde seu nascimento vem se dedicando ao estudo sobre essa sensação tempo. E apesar das peculiaridades de casa sistema nas teorias filosóficas ou físicas uma noção sempre aparece: é pessoal a sensação do tempo, ou seja, uma experiência individual, subjetiva. Exemplo básico é quando duas pessoas numa mesma situação expressam diferentes opiniões sobre o passar do tempo. Uma diz que demorou, outra que foi rápido. E então? Há dois tempos? Um para cada pessoa? Sim. Cada uma tem uma vivência, para cada uma o tempo é único. Por isso os relógios, os calendários serem a marca do nascimento da vida social.

Na mitologia grega o Caos era a ausência de tudo, mesmo do tempo. É o titã Chronos que inicia a lógica da contagem do tempo e ordena as coisas. Ironicamente, Chronos é aquele que tudo devora... O tempo resolve tudo... Chronos simboliza o que devora – os filhos para não perder o trono - e que ao mesmo tempo gera – sempre novos filhos. Já Kairos é o momento oportuno, aquele que surge assim de repente e passa. Na mitologia grega o tempo tem então duas faces: o calendário e o relógio ainda lunar e solar para os gregos antigos; e a sensação de duração ou passagem, a leveza ou ansiedade que só cada um de nós pode sentir em relação as horas, dias, meses, anos. Por isso deus Jano é o símbolo do mês de janeiro. Com duas faces, uma voltada para o futuro outra para o passado, Jano é a reflexão e o entusiasmo, o feito e o porvir.

O paradoxo sobre o tempo, essa sua dupla face está presente em nossos dias. Estamos presos aos horários e às datas num mundo cada vez mais rápido. E basta um mínimo de descuido para vivermos uma vida longa e ter a sensação de nada ter vivido. Montaigne, filósofo francês do século XVI disse na obra Ensaios: “qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhes dais. Há quem viveu muito e não viveu.” Por isso a importância em ter um cuidado com as relações que estabelecemos, as decisões que tomamos, os caminhos que traçamos para que o tempo não seja só um fardo, um deus que tudo devora, mas também que seja prazer, alegria, conquistas e realizações. Por isso a humanidade criou os rituais, como a passagem de ano e as comemorações de aniversário. Já no antigo Egito comemorava-se o aniversário. Naquele momento só faraós tinham esse privilégio de dentro do cronos criar um momento kairótico. Porém, com o tempo, todas as pessoas passaram a desfrutar desse ritual. Os gregos, por exemplo, faziam um pão com mel em forma de lua e ofertavam a deusa Ártemis, representante da fertilidade e da passagem da fase infantil à adulta.

Proibido pelo cristianismo em seus primórdios por ter uma origem pagã, a comemoração do dia em que nascemos tornou-se permitida no século IV quando a Igreja passou a comemorar o nascimento de Cristo e então um hábito se criou. Todavia, há religiões, como as Testemunhas de Jeová, que não celebram o aniversário por verem nos rituais algo de pagão. Ou culturas, como no Vietnã e na China, que não se celebra o aniversário na data do nascimento, mas na passagem do ano. Com efeito, uma prática que é muito comum para alguns é, para outros, nem tão comum ou bastante diferente da nossa. Isso nos mostra que a diversidade faze parte do ser humano e só entre a diferença não indiferente praticamos a humanização a cada dia.

Há muitos discursos que interpretam de forma unilateral os rituais, acabando por praticar diferentes formas de silenciamentos. Mais precisamente, escolher olhar para os rituais como prática egocêntrica ou como prática consumista é uma escolha. Todo ponto de vista é sempre a vista de um certo ponto, não é mesmo? Opto por acreditar nas tensões e que os valores não estão prontos, mas que são criados e recriados a cada encontro, momento e ocasião.

Sabemos que o capitalismo usa demasiadamente dos rituais que humanizam as pessoas e as relações, como a comemoração de aniversário, para criar o consumismo e o manter. Todavia, esse é só um lado da moeda. É só uma possibilidade de relação. É uma escolha, de cada um de nós, a forma como nos relacionar com as outras pessoas, com as festas, rituais etc. E é também responsabilidade de cada um de nós a prática de relações que promovam a diversidade, a pluralidade saindo do lugar comum do apagamento. O sentido não está pronto. Ser humano é criar sentidos o tempo todo em nossa temporalidade.

Presentear, por exemplo, pode ser sentido e praticado como um ritual singelo de oferecer aos entes amados bons fluidos, energia positiva e pode ser visto como um ato altruísta. E esse presentear não tem de ser necessariamente algo material. E mesmo quando for o valor que atribuímos aos presentes são reflexos de nós mesmos, isto é, não está no presente em si seu sentido, seu valor, mas no olhar que humaniza ou não.

Comemorar é comermos juntos, um ritual que também representa a união, a gratuidade e a partilha. Não há uma única verdade sobre o porquê as pessoas celebram acontecimentos como nascimento, morte etc., mas escolho pensar que celebramos porque buscamos uma experiência kairótica, uma quebra ou pausa no cotidiano regido por regras, exigências e esquecimentos. Festejar é necessariamente uma inversão de valores. Quebram-se, mesmo que momentaneamente, hierarquias, comunga-se com o familiar, as brincadeiras, as músicas, as danças. Esses rituais colocam em tensão as relações de dominação, de opressão. Em outras palavras, as festas são pretextos para as pessoas se encontrarem, se falarem, enfim, se humanizarem. A festa, diz Bakhtin:


A festa é isenta de todo sentido utilitário (é um repouso, uma trégua, etc.). É a festa que, libertando de todo utilitarismo, de toda finalidade prática, fornece o meio de entrar temporariamente num universo utópico. É preciso não reduzir a festa a um conteúdo determinado e limitado (por exemplo, a celebração de um acontecimento histórico), pois na realidade ela transgride automaticamente esses limites. (BAKHTIN. A cultura popular na Idade média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais. 2010, p. 241).

Nessa perspectiva de Bakhtin, festejar é por o mundo de cabeça para baixo, criar outras perspectivas, novos valores. Ou seja, é a força das paixões humanas criando, renovando-se e contagiando a todos. Os momentos de festa, de comemorações são momentos pelos quais reinventamos as relações, reafirmamos as uniões ou as criamos. Celebramos as conquistas, planejamos novos caminhos, aprendemos com os erros. É a nossa relação com o tempo também. Nos imortalizamos quando usamos do tempo para criar relações humanas. Aceitamos o destino, amor fati diria Nietzsche; ultrapassamos nossa finitude e abrimos espaço para que a própria finitude seja pensada, refletida e reinventada.










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