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A ALEGRIA DE VIVER - by Kátia Vanessa Tarantini Silvestri

A alegria de viver. Mas o que é alegria? E a vida, como defini-la? Proponho pensar a vida como uma imbricação de relações ambivalentes. Caracterizada pela incerteza e busca constante de criação de sentidos. A alegria, como uma afeição paradoxal. Juntas, alegria e vida permitem entendermos a condição humana caracterizada, portanto, pelas tensões entre inicio e fim; plenitude e falta; alegria e tristeza; vida e morte.


“A vida merece ser vivida; ela é uma só; as ocasiões de desprazeres,

de sofrimentos e dores são por demais numerosas para ainda aumentarmos o trágico da

existência por nossa imperícia, nossa incompetência ou ignorância do que deve ser feito”

( Michel Onfray Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas, 2008, p. 97-98)



É um lugar comum associar a alegria às realizações ditadas pela lógica capitalista – consumismo e autopromoção. Dessa premissa resulta um pensamento tedioso – ser alegre é consumir bens materiais e vender bens imateriais. Esse raciocínio tem uma história: nasce com as sociedades do espetáculo e transformam-se com as sociedades líquidas. A sociedade do espetáculo é uma noção defendida por Guy Debord (A sociedade do espetáculo de 1967) e explica as relações entre a forte influência midiática e as pessoas. Tal espetáculo invade todos os níveis – políticos, humorísticos, religiosos, pessoais – transformando todos os campos da existência em um espetáculo, ou seja, criando discursos/ideias cujo objetivo, senão único, o maior, de reificar o ser humano, isto é, coisificar o humano em cada um de nós. Por meio do marketing, por exemplo, ideias políticas e existências são transfiguradas em linguagem de consumo por meio de imagens e da arte da retórica. Essa sociedade do espetáculo, na qual a vida se torna um show, foi se complexificando, sem deixar de existir, mas transformando-se no que atualmente se define por vida líquida (Vida Líquida de Zigmunt Bauman, 2005). A vida líquida são todas as relações humanas estruturadas por um raciocínio, uma forma de viver, na qual tudo é passageiro, descartável, fluído. Essa forma de existência é precária, pois incapaz de lidar com a temporalidade. O pensamento que tudo tem de ser para ontem, é um mínimo exemplo da vida líquida.

Constatado esse grande solo contemporâneo no qual a vida se desenrola, a alegria de viver fica submetida e degenerada ao promover-se e ao consumir. Temos de ser interessantes, viajados, sempre alertas, rápidos, conectados, sarados senão somos desprezíveis. Como ser alegre se o tempo e a habilidade para lidar com a ambivalência própria existência nos são negados pelas relações cotidianas? Como ser alegre se a alegria ficou restrita a modos que nada tem a ver com a alegria?

O irônico das relações líquidas é que tudo é passageiro e perecível, mas não se possibilita a experiência real da alegria, visto que a possibilidade de sua existência está essencialmente definida tanto pelo seu contrário – a tristeza e ou falta – quanto por sua efemeridade. Digamos que há um discurso malicioso que mascara o real da condição humana e usa da busca por sentido existente em cada um de nós “contra” nós mesmos. Quando compramos um smartphone novinho sua a obsolescência está programada antes mesmo da compra do aparelho. Ou seja, compramos e não conseguimos manter com o objeto uma relação duradoura, pois, as imagens e discursos que são jorrados em nós nos incitam que há um melhor, mais novo, mais capaz e que irá nos trazer mais prazer, mas felicidade e mais segurança. A intenção desses enunciados (discursos e imagens) é “compensar” as angústias diárias, causando na prática o tédio no lugar da alegria, pois pelo tédio continuaremos atrás de uma “cura”; pela alegria nos sentimos instintivamente completos. Mais drasticamente, esse raciocínio líquido produz também as relações amorosas, efetivas e profissionais. É um bombardeio que afeta a humanidade por todos os lados possíveis.

Essa constatação é uma situação imexível? Nos tornamos as pilhas da máquina Matrix? Espinosa (Ética, 1677), na segunda metade do século XVII levantou uma questão que hoje podemos redizê-la como uma afirmação: os afetos que nos atravessam nos modificam, mas nós também oferecemos a esses afetos resistência. Um embate existe. Não são tranquilas as relações ideológico-valorativas. Os discursos/ideias que são oferecidas a nós não são neutras ou ingênuas, mas nós não somos passivos e neutros. A cada palavra/ideia dirigida a nós respondemos com outras palavras/ideias. Há uma tensão entre as palavras em nós e as palavras a nós emitidas. Nossas respostas variam em verbais e extra verbais. Posso esboçar uma expressão de desconfiança, pode ser um som quase inaudível de um suspiro. Pode ser uma frase toda, um artigo, pode ser um sorriso e uma gargalhada. Seja como for somos falantes e nada passa por nós sem ser também por nos modificado, redito e ressignificado.

Eis a ambivalência da vida. Viver é uma experiência de tensões. A instabilidade e relações efêmeras definem a condição humana e a alegria é a única afeição que existe juntamente com seu contrário - a tristeza. Delas, todas as demais sensações se derivam. Vimos que a alegria está degenerada em nossas relações sociais atuais ficando submetida a autorização alheia. Me promovo (sejam pelas redes sociais, pelas falas cotidianas) dizendo que consumo mais que o outro – então sinto essa alegria degenerada – que faço mais coisas que o outro, que minha vida é mais repleta de aventuras, prazeres. Notemos que nesse sentido, a alegria fica dependente da autorização do outro, isto é, não basta a si mesma - o que é a ausência de alegria real.

Há uma longa tradição advinda da Antiguidade que diminui a força da alegria ou a desloca. De Platão a Heidegger, a alegria só é possível se houver um ultrapassamento dos prazeres ditos “mais baixos”. Mais precisamente, só se é alegre, para essa longa tradição, se o mundano é desprezado em nome de algo metafísico, místico. Daí a alegria ser como uma fuga da realidade e não a experiência da própria realidade. Além dos discursos midiáticos que fazem esse caminho deslocando a alegria para bens matérias e imaterias, há alguns discursos religiosos, em diferentes momentos e em diferentes níveis, que também repetem essa tradição platônica ao denunciar os prazeres da carne como pecados – errar o alvo - pois o alvo é o além – um não lugar aqui – e não o aqui. O fanatismo (todos os tipos de fanatismo) é um outro exemplo que reproduz essa mesma tradição com uma leve mudança na forma: a alegria do eu está no outro concordar, aceitar e compartilhar de uma mesma postura, ideia e ou prática. Enquanto todos não forem como eu, não fizerem como eu, para mim não está bom, não estou feliz. Eis a ditadura da identidade enquanto idêntico. Eis uma das piores formas de terrorismo. Por essa ditadura da identidade o outro é desprezado, sendo aceito somente quando se veste do eu, se mascara de mesmo.

A alegria é uma força, a maior diz Rosset (2000). Mas como vivê-la além de todos esses mecanismos opressores? Vimos mais acima que somos respondentes, ativos. Eis um lugar de princípio. Assumir essa nossa condição humana de falantes no exato sentido daquele que reage, responde a todo o universo da linguagem (responder a todos os discursos, enunciados, ideias, padrões). Responder ativamente, sabendo que em cada um de nós as palavras/ideias serão novas e que para cada outro de nós as mesmas palavras/ideias serão também novas conforme os sentidos que surgem entre dois ou mais falantes. Esses sentidos que surgem são incontroláveis, inalienáveis, dai sua força. A ambivalência da própria condição humana é a chave para a alegria livre das maliciosas “alegrias” que trabalham para a lógica capitalista fundada, em nossos dias, em relações superficiais/líquidas.

A experiência da alegria real é também uma experiência fugidia, mas não superficial. E essa experiência é paradoxal porque a alegria ultrapassa o eu, “escapa à causa” (ROSSET, 2000, p.15) e alcança sempre mais – outras pessoas, outras relações – fomentando novas relações, buscas e experiências. Aqui há uma diferença crucial entre a ambivalência da condição humana em que o prazer, por exemplo, sua força reside não em sua eternidade, mas em seu ultrpassamento. Lembro-me de Alves (Livro sem fim, 2002) quando diz sobre a cozinheira que está cozinha não para matar a fome, mas para causar mais fome... Diferentemente é a busca desenfreada promovida pelo consumismo que oferece uma “alegria” associada a uma consumo material ou imaterial cujo fim é a competição e ilusão de ser mais humano, melhor que o outro. Ou seja, produz mais e mais o individualismo e gera realmente o tédio e não a alegria. Toda a energia vital da pessoa fica dirigida ao promover-se, ao aparecer e não ao a plenitude experienciar em si da alegria e sua existência paradoxal – pois é em si e, por se realmente em si, vai além, para além do em si. É uma gratuidade. Um transbordar.

A alegria, sua força única pode até começar no eu, num nível mais particular, mas sua realização se dá no nível cósmico. Sua existência depende sim de sua aparente fragilidade, ela termina e recomeça. Freud (O mal estar na civilização, 1930) dizia que seria insuportável se todos os dias fossem felizes. Em outras palavras, é necessário o jogo entre as forças, essa luta entre a falta e a busca, o encontro e a distância. Somente assim podemos vivenciar a alegria real, isto é, sua materialidade, sua concretude possíveis por essa situação paradoxal que a gera: a falta, a plenitude e novamente a falta, e a plenitude...


Dicas de leituras:

BOFF, L. A águia e a galinha – uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

HUXLEY, A. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Globo, 1982.





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